Como usar IA nas salas de aula de maneira saudável?
O uso de Inteligências Artificiais na educação costuma dar pano pra manga. Entenda os limites e possibilidades tecnológicas na sala de aula
“Chat GPT, hoje preciso que você seja um repórter de uma revista impressa e escreva os dois primeiros parágrafos de uma reportagem sobre o uso de Inteligência Artificial na Educação. Pode florear e romantizar seu texto”. Esse foi apenas um dos comandos que foram enviados, na tentativa de iniciar esta reportagem com ajuda do Chat. Uma tentativa de metalinguagem, usando a IA para falar sobre si própria, de forma ou outra. Os resultados, porém, não foram satisfatórios. Com exemplos rasos e uma introdução parecendo a de uma redação do ENEM, o Chat não conseguiu entregar a emoção esperada para uma reportagem de revista.
Professores de todo o Brasil, atualmente, sabem bem o que é essa sensação: receber uma resposta genérica ao mandar um trabalho para casa, um sinal claro que seus alunos tiveram uma pequena ajudinha na hora de formular a resposta. Apesar disso, a maioria dos profissionais da classe reconhecem que não dá para nadar contra a maré e que é preciso encontrar formas de introduzir essas inteligências na sala de aula, tentando criar um balanço para continuar instigando um senso crítico.
Ao menos é isso que dizem os números. Segundo informações da pesquisa Perfil e Desafios dos Professores da Educação Básica no Brasil, do Instituto Semesp (Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior), três em cada quatro professores concordam com o uso da tecnologia e inteligência artificial como ferramenta de ensino.
Segundo o levantamento, 74,8% dos entrevistados concordam parcial ou totalmente com o uso da tecnologia e inteligência artificial no ensino. Apesar disso, apenas pouco mais de um terço, 39,2%, dos professores entrevistados disseram que sempre utilizam a tecnologia como ferramenta na hora de educar. Além dos desafios socioeconômicos, um possível enfrentamento na hora de usar essas ferramentas é não pecar pelo excesso. Afinal, como encontrar a linha tênue na hora de usar a Inteligência Artificial para mostrar às crianças e adolescentes que ela pode ajudá-los, mas não fazer o trabalho para eles?
Para André Miceli, professor de MBAs da FGV, sócio do Energy Summit Global e CEO e Editor-Chefe da MIT Technology Review Brasil, o segredo é o equilíbrio.
“É preciso equilibrar o uso da Inteligência Artificial como uma ferramenta que complementa o processo de ensino e aprendizagem, e não desumanizar a educação. Um outro ponto importante é considerar que a Inteligência Artificial é feita pela média do conteúdo produzido sobre determinado assunto e isso impacta os outliers (resultados que podem variar de forma errônea). Então, é preciso que os professores levem esse fato em consideração. Mas, se por um lado existem esses desafios, por outro a inteligência artificial é uma ferramenta poderosíssima para que o ensino seja individualizado”, explica.
Individualização, ou melhor, personalização do ensino. É dessa forma que Alexandre Le Voci Sayad, consultor nas áreas de cultura, arte e criatividade da Escola Lourenço Castanho, de São Paulo, mestre em Inteligência Artificial e Ética pela PUC-SP, especialista em negócios digitais pela Universidade Califórnia – Berkeley e doutorando em políticas de lifelong learning e IA na Universidade Autônoma de Barcelona (UAB – Espanha), enxerga os benefícios do uso dessas inteligências no processo educacional.
“Com o tempo, foi-se descobrindo, por meio de estudos em neurociência, educação e comportamento, que nenhum estudante aprende da mesma maneira. Cada pessoa tem seu próprio ritmo, metodologias e estruturas de aprendizagem. O uso de dados em plataformas de personalização, conhecidas como plataformas adaptativas, permite que os estudantes aprendam o mesmo conteúdo de maneiras diferentes, dependendo de suas habilidades e propensões. Essas plataformas identificam como cada usuário aprende melhor e se adaptam automaticamente a isso”, cita.
Ele ressalta, no entanto, a importância de nunca permitir que essas Inteligências andem com as próprias pernas, sem o senso crítico de um humano ao seu lado, principalmente no que tange à educação de crianças.
“É importante destacar que é essencial garantir que a inteligência artificial seja um suporte e não substituto para a criatividade, para empatia, para o pensamento crítico, que são características desenvolvidas com auxílio de professores, de outros seres humanos”, reforça Alexandre Le Voci Sayad.
A IA deve ser suporte para a educação, segundo especialistas (Foto: Freepik)
Facilitando a vida, não o pensamento
Assim como muitos professores por aí, Luciana Leite tem grandes questões em relação ao uso da Inteligência Artificial. A pedagoga, que já atuou de salas de aula à direção escolar, teme que o uso excessivo da IA irá limitar o pensamento humano, cortando nossa capacidade de criar e ir além. Para Alexandre Sayad, essa tensão é justamente o motivo que torna o uso dessas inteligências na sala de aula ainda mais essencial.
O profissional defende a ideia de que, aprendendo em sala de aula, os alunos têm uma chance maior de olhar para essas tecnologias de forma crítica. “Nas minhas formações, percebo que quem tem medo de usar a IA Generativa é quem nunca a utilizou. Um excelente caminho ético é fazer os alunos avaliarem como o ChatGPT, por exemplo, os auxiliou na organização das redações e dos textos, levando-os a produzir um texto com essa ferramenta e sem ela, e os próprios alunos avaliarem o desempenho. O ideal é que os professores explorem, junto com os estudantes, as ferramentas e façam os alunos perceberem suas limitações, afinal, as plataformas são muito limitadas”, pontua.
Deixar de olhar essas inovações como inimigas e passá-la a olhá-las como aliadas pode ser o primeiro passo para impedir que elas façam o caminho inverso, de limitar nosso futuro, ao invés de expandi-lo.
“Os professores gradativamente devem se preparar para uma nova era da educação. Olhar para as Inteligências Artificiais e usá-las nas sala de aula pode ajudar a preparar esses alunos para um futuro onde a tecnologia vai ser onipresente”, completa André Miceli.
De olho na proteção de dados
Apesar de defenderem o uso de Inteligências Artificiais para correção de atividades, os profissionais concordam que o tema ainda é complicado, principalmente no quesito direito de dados, e que as leis ainda estão no processo de se materializarem.
“A IA para avaliação é um campo que ainda está sendo explorado; não é um campo que tem muitos resultados a serem apresentados. Hoje, você já tem sistemas que corrigem até redações escritas à mão com uma certa acurácia. O problema é para onde vão esses dados e para que são usados”, instiga Alexandre Sayad.
“Nesse ponto, no âmbito das plataformas personalizadas, temos muitas questões associadas, mas cito a propriedade dos dados: quem é dono dos dados gerados pelas crianças? O governo pode usar até que ponto? Os dados são sensíveis, são dados de propriedade. Então, essa não é uma questão muito simples e clara ainda para todo mundo. Os dados não podem ser comercializados, por exemplo. Eles precisam ter uma camada de segurança para que não vazem também”, completa.
Pela falta de regulamentação fixa, justamente por ser algo ainda tão recente, o profissional pontua que, atualmente, as instituições que usam essas inteligências estão criando códigos internos, delimitando os limites no dia a dia.
Inovação pra quem?
Há exatos 10 anos, em 2014, a presidente da Fenep (Federação Nacional das Escolas Particulares), Amábile Pacios, pontuou que 30% das escolas particulares em todo o país adotaram de alguma forma o tablet em sala de aula. Em 2024, um estudo chamado “Panorama da qualidade da Internet nas escolas públicas brasileiras”, realizado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Tecnologia de Redes e Operações (Ceptro.br) do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), pontuou que 29% das escolas estaduais e municipais do Brasil contam com computadores, notebooks ou tablets para acesso às redes pelos alunos. Além disso, aquelas que possuem algum equipamento têm, em média, 1 dispositivo para cada 10 estudantes no maior turno escolar. As porcentagens podem parecer similares se não olharmos para um pequeno detalhe: a diferença de 10 anos entre elas.
A disparidade exorbitante do acesso à tecnologia nos diferentes tipos de educação no Brasil acende um alerta frente ao uso de Inteligências Artificiais nas escolas: afinal, quem serão os alunos que poderão, de fato, aprender a manuseá-las?
“Quando olhamos para uma lente mais ampla, olhando para o lado social e não individual, vemos como essas mudanças podem aumentar a desigualdade entre as escolas que têm acesso às tecnologias mais avançadas e aquelas que não têm”, problematiza André Miceli.
O Governo Federal tem traçado metas para conseguir diminuir essa disparidade na educação. Para isso, eles criaram a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas (ENEC), que pretende dar acesso à internet de qualidade a mais de 138 mil escolas públicas de todo o País até 2026. A ENEC recomenda que a velocidade de download deve ser igual ou maior que “1 Mega” (1 Mbps) por aluno no turno com mais matriculados para que a internet seja considerada de qualidade.
A pesquisa que saiu neste ano, já citada, mostrou que das 32.379 escolas com mais de 50 estudantes no maior turno, atualmente monitoradas pelo Medidor Educação Conectada, apenas 3.640 (11%) cumprem essa meta. Ou seja, são dois anos para completar as 89% que restam.
“No Brasil, o principal desafio é o acesso desigual à tecnologia e à internet. Logo de partida já temos uma questão muito relevante, que pode aumentar o abismo social entre classes sociais diferentes”, afirma Miceli.
Além dos desafios do acesso às tecnologias, ele acrescenta, ainda, mais um: a formação dos professores. Afinal, mesmo com o acesso ao material se amplificando, é preciso também capacitar os educadores, ensinando-os a lidar com a tecnologia e aplicá-la na sala de aula.
“Vale ressaltar que essas não podem ser razões que nos faça ignorar as Inteligências Artificiais por um tempo. A gente não vai conseguir resolver primeiro todos os problemas que viabilizam o bom uso da Inteligência Artificial e só depois começar a inseri-la no nosso contexto educacional. Se fizermos isso, estaremos perdendo oportunidades em relação ao mundo. Precisamos avançar as linhas de oportunidade e melhorias em paralelo. Tecnologia e educação, hoje em dia, são pontos que, se não forem abordados, ficaremos para trás enquanto nação”, conclui.